Há algo profundamente perturbador — e ao mesmo tempo revelador — nas selfies tiradas durante velórios. A imagem de alguém sorrindo ao lado de um caixão, muitas vezes com filtros e hashtags, escancara uma verdade incômoda sobre o modo como a sociedade contemporânea tem lidado com a morte, com a dor e com a própria noção de presença e ausência.
Vivemos uma era marcada pelo império da imagem. O que não é postado, compartilhado, curtido, não existe. Nesse contexto, até o luto, espaço sagrado de silêncio, introspecção e elaboração da perda, tornou-se mais uma oportunidade de autopromoção ou validação social. Fotografar-se em um velório é, em certo sentido, tentar provar que se esteve ali — não necessariamente em termos afetivos, mas como testemunha digital, como participante de um rito transformado em evento.
A psicanálise ensina que o luto é um processo de trabalho psíquico. Freud, em seu célebre texto Luto e Melancolia, descreve-o como um caminho doloroso de desligamento libidinal do objeto perdido. Lutar contra esse processo, interrompê-lo ou encurtá-lo artificialmente é impedir que a psique atravesse o vazio necessário para seguir adiante. Mas o que vemos nas redes é muitas vezes uma recusa do luto, uma negação da ausência, uma tentativa de cobrir a dor com o brilho da performance.
A selfie no velório parece cumprir um papel paradoxal: é ao mesmo tempo um gesto de negação e de escancaramento. Nega-se o silêncio da perda com o barulho do clique, com a postagem que exige reações. Mas também se revela ali uma angústia profunda — uma tentativa desajeitada de lidar com o insuportável da morte, com aquilo que escapa ao controle e à imagem. O narcisismo digital, nesse ponto, não é apenas vaidade; é defesa. Defesa contra o real da morte, contra o desamparo que ela convoca.
O filósofo Byung-Chul Han, ao falar sobre a sociedade do desempenho e da transparência, lembra que hoje tudo precisa ser exposto, tudo precisa ser visto para ser legitimado. Não há espaço para o recato, para o recolhimento. O luto, que tradicionalmente exigia tempo, solidão, elaboração simbólica, dá lugar à postagem com frase feita, emojis chorosos e um “#luto” que mais sinaliza pertencimento do que dor.
Mas há também um componente cultural mais amplo. Em uma sociedade que nega o envelhecimento, que medicaliza a tristeza, que celebra a juventude e a produtividade, a morte é um tabu reatualizado. Não se morre mais em casa, entre os entes queridos — morre-se no hospital, na frieza das UTIs, muitas vezes sem despedida. O velório, que deveria ser ritual de passagem, de elaboração coletiva da dor, vira um cenário para gestos vazios, onde a presença é substituída pela encenação.
Esse fenômeno nos convoca a pensar: o que estamos fazendo com o nosso luto? Como estamos elaborando as perdas que nos atravessam? Estaríamos transformando até mesmo a dor em conteúdo, em moeda simbólica para trocas narcísicas?
Luto exige tempo, escuta, elaboração. Não cabe no enquadramento de uma selfie nem no feed de uma rede social. Como disse Lacan, “o real é aquilo que insiste em voltar sempre no mesmo lugar”. E a morte é, talvez, a forma mais brutal desse real. Não há filtro que a suavize. Mas talvez, se ousássemos encará-la com a seriedade que exige, sem a pressa de tornar tudo postável, conseguíssemos reencontrar o sentido mais humano da perda — e, quem sabe, também da vida.
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