Falam tanto da geração Z e dos millennials como se fossem um problema ambulante. Dizem que são frágeis, que se vitimizam, que romantizam a tristeza, que tudo é gatilho. Mas poucos param pra pensar que essa abertura ao sofrimento — por mais caricata que às vezes pareça — é um sinal de evolução psíquica. Como diria Sándor Ferenczi, um dos grandes nomes da psicanálise relacional, “a criança maltratada vive em silêncio, mas jamais esquece”. Talvez o que essa juventude esteja fazendo seja exatamente o que as gerações anteriores não puderam fazer: dar nome à dor.
Ninguém fala que as gerações anteriores estão cheias de feridas mal curadas. Gente que nunca teve o direito de brincar, de chorar, de ser cuidado. Cresceram sob a rigidez da moral patriarcal e produtivista, onde o valor de uma pessoa era medido por sua utilidade. A subjetividade foi esmagada pela função. Freud já dizia que a civilização cobra um alto preço pela renúncia pulsional — e muitos pagaram com a própria saúde mental.
A psicanálise nos mostra que o sujeito se constitui no campo do Outro — e se esse Outro primário (pais, cuidadores, instituições) falha gravemente em sustentar a existência da criança com presença afetiva, escuta e continuidade emocional, então a subjetividade que emerge é marcada por falhas narcísicas, rupturas de confiança básica, fendas no sentimento de existência, como nos fala Winnicott. E é exatamente disso que estamos falando aqui.
Quantos adultos hoje, com 50, 60 anos ou mais, cresceram sob a égide da privação emocional? Gente que nunca foi autorizada a brincar, a ser espontânea, a errar. Como diz Winnicott, “é no brincar que a criança se torna capaz de ser criativa, e é só sendo criativa que ela pode se sentir real”. Pois bem: muita gente cresceu sem nunca ter se sentido real.
Esses adultos, muitas vezes, são os que hoje ridicularizam os mais jovens por “precisarem de terapia”. Mas na verdade, o que vemos, frequentemente, é projeção — no sentido mais freudiano da palavra. O que incomoda no outro é aquilo que ainda dói dentro de si. A liberdade emocional da juventude escancara a repressão e a dureza das gerações anteriores. Melanie Klein já havia notado isso: quando o objeto bom (a leveza, a criatividade, a espontaneidade) nos escapa, passamos a destruí-lo simbolicamente no outro.
E sim, eu compreendo. Porque quando olho pra essa galera mais velha, vejo dor. Vejo um sujeito ferido tentando se reorganizar tardiamente. Vejo alguém que, aos trancos e barrancos, tenta brincar aos 60 o que não pôde aos 6. E não há nada de ridículo nisso. Pelo contrário: a criança interior não é uma metáfora poética. É uma realidade psíquica.
Lacan, em sua releitura do sujeito dividido, falava que o ser humano é costurado entre demandas do Outro e o desejo que nunca se completa. E nesse processo, muitos ficaram paralisados em posições subjetivas extremamente empobrecidas. A tentativa de “brincar tarde demais” é, muitas vezes, um ato de resistência contra um superego opressor que, por décadas, mandou calar, render, obedecer.
Por isso, não reprimo. Não ridicularizo. Porque reprimir esses movimentos de resgate emocional só amplia o trauma. A escuta analítica nos ensina que qualquer tentativa de simbolizar o sofrimento já é, por si só, uma travessia em direção à cura. Mesmo que venha de forma desajeitada, performática ou até um pouco engraçada.
Mas atenção: isso não significa que tudo é desculpa. Reconhecer a dor não é o mesmo que santificar a imaturidade. Empatia não pode ser confundida com conivência. Tem gente usando o discurso do “curar a criança interior” pra virar adulto mimado em público. Uma coisa é fazer terapia, outra é usar “meu eu ferido” como desculpa pra furar fila, pegar assento de idoso, agir como se o mundo devesse colo o tempo todo. Aí não é criança ferida. É narcisismo inflado com preguiça de se responsabilizar.
O próprio Freud dizia que o trabalho do luto exige passar pela dor para se reorganizar — mas nunca usar essa dor como ponto de fixação. Quem se acomoda na posição de vítima eterna evita o processo de simbolização e permanece preso à repetição, como nos alertava Lacan.
Então, eu repito: não julgo. (Afina de contas, quem sou eu para isso?) Porque sei que tem muita gente por aí vivendo em silêncio a infância que foi arrancada à força. Sei que muita “grosseria” é só carência mal expressa. Sei que muita “pose de durão” é só medo de quebrar. E sei, acima de tudo, que rir disso tudo às vezes é mecanismo de defesa — o famoso “rir pra não surtar”. Ou, como diria Freud, o humor é a mais elevada das defesas do ego.
Rir caladinho é isso. É saber que tem coisa que a gente só entende com o tempo, com a análise, com o trabalho de se escutar de verdade. É rir, sim, mas sem desprezo. É rir com a compaixão que o inconsciente exige. Só não me peça pra aplaudir a picaretagem institucionalizada. Porque o que a psicanálise ensina, acima de tudo, é que o sujeito é responsável por aquilo que faz com o que fizeram com ele.
E nesse ponto, não tem fila preferencial que resolva.
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