sexta-feira, agosto 08, 2025

O sujeito workaholic: quando o excesso de trabalho fala mais do que o descanso pode escutar

 Em nossa cultura, onde a produtividade parece ter se tornado medida quase exclusiva de valor pessoal, a figura do sujeito que vive para o trabalho emerge como um sintoma não apenas social, mas psíquico. Este não é simplesmente alguém dedicado ou comprometido, mas alguém cuja identidade está profundamente atrelada à atividade incessante, como se fosse impossível existir fora do fazer. É o que chamamos de workaholic — termo importado do inglês, mas que, na escuta psicanalítica, remete a algo muito mais complexo do que uma mera dependência comportamental.

A psicanálise nos convida a perguntar: o que significa, para o inconsciente, nunca poder parar? Que função psíquica cumpre essa ocupação constante? Freud já nos ensinava que o sintoma é uma formação de compromisso, isto é, um arranjo entre forças internas que, de um lado, tentam trazer à consciência desejos e conteúdos recalcados e, de outro, procuram mantê-los fora do alcance. O trabalho excessivo, nesse sentido, pode ser compreendido como um modo específico de lidar com a angústia, funcionando como defesa contra o vazio, a perda, a solidão ou qualquer experiência interna que se apresente como ameaçadora.

Para Freud, o trabalho é uma das vias possíveis da sublimação, destino saudável e socialmente aceito para as pulsões. No entanto, quando deixa de ser expressão criativa e se transforma em compulsão, estamos diante de um quadro distinto. O workaholic, ao repetir sua rotina exaustiva, já não busca prazer ou satisfação no sentido pleno, mas se encontra enredado na repetição que não liberta. Como nos casos clínicos clássicos estudados por Freud, há aqui uma lógica de Wiederholungszwang — a compulsão à repetição que, em vez de resolver o conflito, o mantém ativo sob novas roupagens.

Lacan oferece outra chave importante para pensar o fenômeno. No mundo contemporâneo, o supereu não atua apenas como interditor, mas como incitador. O imperativo “goza!” substitui, em parte, o “não pode”, criando um ambiente no qual o sujeito se vê coagido a produzir mais, criar mais, provar mais — como se cada conquista fosse insuficiente e precisasse ser imediatamente superada. O trabalho, nesse contexto, torna-se lugar de gozo, ainda que doloroso. É o gozo que exaure, mas que, paradoxalmente, sustenta o sujeito, pois está atrelado à economia do desejo e da falta. O corpo, nesse arranjo, é reduzido a ferramenta, um meio para manter a máquina girando.

Winnicott, por sua vez, ajuda-nos a compreender a dimensão identitária desse funcionamento. Ao falar do falso self, ele descreve sujeitos que moldaram sua existência para corresponder às expectativas do outro — seja este outro um pai severo, uma mãe crítica ou uma cultura que valoriza apenas resultados. O workaholic pode ser um desses casos: alguém que, ao longo da vida, aprendeu a ser aceito e amado pelo que faz, e não pelo que é. Nessa adaptação excessiva, perde-se o contato com a espontaneidade, com o brincar e com o vazio fértil que permite o surgimento do desejo próprio. Trabalhar sem cessar oferece a ilusão de controle e de valor, mas é também a prisão que mantém o sujeito distante de sua experiência mais autêntica.

Muitas vezes, a escuta clínica revela histórias marcadas por ausências precoces, perdas não elaboradas ou ambientes onde o afeto estava condicionado ao desempenho. Não é raro que, para essas pessoas, o trabalho assuma o papel de um objeto amoroso, funcionando como substituto da relação e como anestesia para dores que não encontram palavras. O excesso de tarefas, reuniões e metas torna-se, então, uma espécie de muralha contra o encontro com o próprio desamparo.

O grande desafio para o analista é escutar o fazer como linguagem. Assim como os sonhos e os atos falhos, o excesso de trabalho também pode ser lido como mensagem do inconsciente, carregada de deslocamentos e condensações. Na rotina saturada, nas agendas que não deixam brechas, há um discurso silencioso: o de alguém que precisa estar ocupado para não se deixar atravessar por algo que teme. Ao oferecer o espaço analítico, abrimos a possibilidade de que o sujeito se interrogue sobre o que há de próprio nesse excesso e o que é herança do desejo do outro, internalizado ao longo de sua história.

Não se trata de propor uma vida mais leve como receita ou de pregar um equilíbrio idealizado. A psicanálise não trabalha com fórmulas, mas com a singularidade. O caminho possível é o de permitir que o sintoma fale, que o sujeito reconheça o que se repete ali e, se desejar, possa reposicionar-se diante disso. Talvez, nesse processo, descubra que descansar, brincar, criar e até se permitir não produzir também é legítimo. Como nos lembra Lacan, o único bem verdadeiro que o sujeito possui é o seu desejo — e este não se mede por horas extras na folha de ponto.

O workaholic, visto pela lente da psicanálise, é alguém cuja história merece ser escutada com a mesma atenção que dedicamos aos sintomas mais discretos. Pois, sob a aparência de força, disciplina e sucesso, pode habitar um sofrimento silencioso, estruturado na tentativa de se manter afastado de algo que insiste em retornar. E é nesse ponto que a análise pode abrir brechas: não para eliminar o trabalho, mas para resgatar a vida que ficou aprisionada nele.

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