quarta-feira, setembro 03, 2025

A lenda do Aluaré

Dizem que o sertão guarda mais do que os olhos veem. Não é só chão rachado, nem apenas mandacaru em silêncio. O sertão é um livro fechado, escrito em vento e pedra, onde cada página esconde segredos de um povo que nunca se rendeu.
E no coração desse livro vive o Aluaré, criatura sagrada, metade céu e metade terra
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A Criatura

O Aluaré tem cabeça e asas de carcará, olhos como sóis em miniatura, capazes de ver o invisível: rastros antigos, segredos enterrados, ameaças escondidas na escuridão. O corpo é o de uma raposa, astuta e ágil, portadora da inteligência ancestral do mato.

Suas garras brilham como ferro forjado, afiadas como o destino, e sua plumagem mescla negro, branco e dourado, como se carregasse consigo o sol, a noite e a aurora.

Aluaré é o guardião do sertão na sua essência, protetor das riquezas ocultas — pedras de quartzo enterradas nas serras, cânticos passados de boca em boca, danças, rezas, festas e segredos do povo.


Aluaré: O Guardião da Memória do Sertão


O vôo do Aluaré



O tempo amanheceu estranho no sertão. As vozes que antes enchiam o ar de aboios e cantorias se calaram como se nunca tivessem existido. As fogueiras ardiam mudas, as rezas se desfaziam em eco, os cordéis se desmanchavam em pó antes mesmo de serem lidos. Não era fome nem seca, mas um vazio mais cruel: a memória se desfazia como areia soprada pelo vento.

À noite, quando a lua se tingiu de vermelho como sangue, o céu tremeu com o bater de asas que não eram de ave, nem de fera, mas de algo maior. O Aluaré emergiu do coração das serras como um trovão vivo. Tinha cabeça e asas de carcará, afiadas como o próprio sertão, e olhos como sóis em miniatura, capazes de enxergar o invisível — rastros esquecidos, segredos enterrados, ameaças escondidas na escuridão. Seu corpo de raposa era ágil e astuto, guardando a inteligência ancestral do mato.

As garras do Aluaré brilhavam como ferro forjado, afiadas como o destino. Sua plumagem negra, branca e dourada cintilava sob a lua, como se carregasse em si a noite, o sol e a aurora. O seu canto — mistura de grito e lamento — atravessava a caatinga como um vento de lembranças, despertando o que estava adormecido. Onde suas asas roçavam o ar, flores de mandacaru se abriam na escuridão, rios escondidos despertavam, estrelas se inclinavam mais perto.

Mas o esquecimento não era filho da terra. Veio de fora, trazido pelos forasteiros de olhos de pedra e corações secos. Não espalhavam pólvora nem fome, mas um feitiço frio: o poder perverso de apagar memórias, calar vozes, transformar o povo em sombra.

O Aluaré, guardião do sertão, não se mostrava a qualquer um. Apenas os de coração desperto o viam refletido nas cacimbas, no cintilar das brasas, no sopro do vento. Em segredo, soprava coragem: devolvia o fôlego aos sanfoneiros, a cadência aos aboios, a força às rezadeiras. A cada lembrança renascida, o Aluaré se tornava mais luminoso, sua sombra mais vasta.

Quando os forasteiros tentaram tomar de vez as riquezas ocultas da terra, o céu se abriu em clarão. O Aluaré desceu em voo rasgando o ar em trovões, suas garras faiscando como brasas. A terra tremeu, e os invasores conheceram o medo. Não houve sangue: o castigo foi o mesmo esquecimento que haviam semeado. Seus nomes se apagaram, suas vozes sumiram, suas memórias viraram cinza no vento.

O povo, ao ver sua história restaurada, compreendeu que a maior morte é a do esquecimento. Reacenderam fogueiras, cantorias, aboios. Cada lembrança tornou-se muralha invisível, cada verso, resistência.

Até hoje, dizem que o Aluaré ainda guarda o sertão. Paira nas serras, repousa nas veredas, ronda os terreiros. Só os que sabem que lembrar é resistir conseguem vê-lo. E quando a lua se tinge de vermelho, é sinal de que ele está perto — soprando nos ouvidos do povo a certeza de que a memória é chama: pode vacilar ao vento, mas jamais se apaga.

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