O Direito Penal brasileiro, tal como estruturado, opera como uma das faces mais visíveis do poder estatal. Longe de ser um instrumento neutro de regulação social, ele manifesta e reproduz dinâmicas de exclusão, controle e disciplinamento de corpos e subjetividades. Para compreender sua configuração, é preciso lançarmos mão de olhares interdisciplinares — especialmente os da sociologia crítica e da psicanálise — que desvelam os sentidos ocultos da punição e revelam a íntima relação entre Direito, poder e desejo.
1. A Função Social do Direito Penal: entre o controle e a seletividade
Sob a ótica sociológica, autores como Émile Durkheim e Michel Foucault oferecem caminhos distintos, mas complementares. Durkheim, em Da Divisão do Trabalho Social (1893), já apontava que a pena cumpre uma função moral: reafirma a coesão social por meio da indignação coletiva. Para ele, o crime é normal, pois serve à evolução dos costumes e à adaptação das normas.
Por outro lado, Foucault, em Vigiar e Punir (1975), desmonta a suposta racionalidade punitiva ao revelar como a pena moderna deixou de ser espetáculo para se tornar mecanismo técnico de vigilância, disciplina e normalização. A prisão, símbolo máximo do Direito Penal, não é apenas um lugar de exclusão, mas um espaço onde se forja a subjetividade do "delinquente" por meio de saberes psi, jurídicos e administrativos. Como afirma o autor: “O delinquente é uma invenção da prisão”.
No Brasil, a seletividade penal é escancarada. Conforme estudos como os de Salo de Carvalho e Vera Malaguti Batista, o sistema penal nacional é estruturado para encarcerar, majoritariamente, jovens negros, pobres e periféricos. A criminalização não é um desvio do sistema — é sua engrenagem essencial. O Código Penal de 1940, mesmo com reformas, ainda carrega a herança autoritária do Estado Novo, refletindo uma lógica punitiva que se legitima pelo medo e pela suposta necessidade de ordem.
2. A Psicanálise e o Inconsciente da Lei: culpa, gozo e punição
Do ponto de vista psicanalítico, o Direito Penal pode ser lido como um dos avatares do Supereu freudiano — essa instância psíquica que, embora ordene a repressão, também goza com a punição. Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud descreve como a culpa inconsciente sustenta a obediência à norma, mesmo quando não há vigilância externa. O Direito Penal, nesse sentido, pode ser interpretado como uma tentativa de organizar o gozo do castigo, tanto do punido quanto do punidor.
Jacques Lacan, por sua vez, ao tratar do significante da Lei, mostra que ela é constitutiva do sujeito — mas também traumática. A entrada na ordem simbólica implica a renúncia ao gozo total (gozo impossível), e é justamente essa renúncia que gera o desejo e o sintoma. A transgressão da lei, nesse contexto, é muitas vezes uma forma de lidar com esse gozo interditado. O ato criminoso pode representar, para o sujeito, uma tentativa de dar sentido ao próprio sofrimento psíquico.
É nesse ponto que autores como Jurandir Freire Costa e Maria Rita Kehl contribuem para uma leitura brasileira da articulação entre subjetividade e punição. Em muitos casos, o infrator encontra na punição um modo de existência, um lugar de reconhecimento simbólico que lhe foi negado socialmente. O cárcere, paradoxalmente, oferece uma identidade.
3. Entre o gozo e o castigo: a perversão da justiça punitiva
A junção das lentes sociológica e psicanalítica nos permite ver que o Direito Penal não apenas pune comportamentos desviantes, mas também organiza, hierarquiza e estigmatiza corpos. A justiça punitiva, muitas vezes, se aproxima de uma lógica perversa: goza ao infligir sofrimento, alimenta-se da dor que deveria evitar.
A psicanálise nos ensina que o sujeito da lei é também o sujeito da falta. E é essa falta que a sociedade tenta encobrir com a fantasia da punição justa, da ordem restabelecida. Mas o que se esconde atrás dessa fantasia? Talvez, como sugerem tanto Lacan quanto Foucault, o desejo inconfessável de manter intocável uma estrutura social que precisa da violência simbólica e real para se sustentar.
4. Conclusão: para além da punição, o desejo de justiça
O Direito Penal brasileiro, assim, aparece como sintoma de uma sociedade que ainda não elaborou seu trauma colonial, sua desigualdade estrutural e sua pulsão autoritária. Pensar um outro Direito — menos vingativo, mais restaurativo — exige não apenas reformas jurídicas, mas uma profunda escuta do inconsciente social.
Como afirmaria Frantz Fanon, é preciso “tentar compreender e explicar o que se passa no fundo da consciência dos dominados” — e isso inclui os que cometem delitos, os que os julgam, e os que legitimam o aparato penal. Um Direito sem escuta é apenas mais uma forma de silêncio imposto.
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