quinta-feira, novembro 28, 2024

Funeral das Horas

Quando li o livro O Ateneu de Raul Pompéia no meu primeiro ano de faculdade, ainda preso às lembranças do Ensino Médio, fiquei maravilhado. Como um livro centenário poderia tratar de questões tão atuais para mim? O Ateneu não falava apenas de um colégio antigo e de seus incidentes, mas daquilo que muitos de nós vivemos no processo de transição para a vida adulta. A tensão entre o que somos e o que estamos nos tornando, entre a inocência e a responsabilidade. Não é algo distante, mas uma questão viva, pulsante na sociedade, que se reitera de geração em geração.

O título deste livro não poderia ser outro senão Funeral das Horas. Quando Raul Pompéia encerra sua obra com a famosa citação, que me marcou profundamente, “Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas,percebi que ele não falava apenas sobre o fim de um ciclo, mas sobre a impossibilidade de voltar atrás. As horas que se vão, os momentos que se perdem e, mesmo quando pensamos que são saudades, são apenas pedaços de algo que já se dissolveu na própria memória.

A citação e a obra de Pompéia me inspiraram profundamente, pois, ao reler essas palavras e refletir sobre minha própria jornada, entendi que a saudade não é o que sentimos de forma imediata. Ela é o que resta depois do tempo, o que fica quando já não conseguimos mais reviver os momentos como eram antes. É o funeral das horas que se passaram, o luto pelo que não volta. E foi essa ideia que me guiou na criação deste livro: uma reflexão sobre as horas perdidas e as mudanças que o tempo provoca nas nossas vidas e relações.

Desde aquele momento em que terminei O Ateneu, a escrita se tornou uma constante na minha vida. Comecei a escrever textos avulsos, muitos baseados em memórias, com a intenção de exorcizá-las. Era terapêutico, um alívio para os fantasmas do passado que, de alguma forma, precisavam ser colocados no papel. Era minha forma de lidar com a dor da transição, com as perdas e os reencontros que, de alguma maneira, me definiam.

Aos 35 anos, no auge da crise dos 30, decidi concatenar esses textos em uma ficção, transformando fragmentos de minha própria vida em algo que pudesse ser compartilhado com o mundo. O processo de escrever sobre essas memórias, agora através da ficção, representa uma segunda fase do exorcismo dos fantasmas do passado. Uma fase que espero ser mais eficaz que a primeira. Espero que, ao revisitar minha história, eu tenha conseguido dar novos significados, novos olhares, novas perspectivas para o que me atormentava. Ao mesmo tempo, espero que o leitor sinta a profundidade dessa transição e do luto simbólico que todos, de alguma forma, carregamos em nossa jornada.

Chamo atenção ao fato de que os nomes dos personagens também carregam significados profundos, refletindo os temas centrais da obra. A escolha dos nomes Dan e Dante, por exemplo, não é apenas estética; ela reforça a conexão íntima e simbólica entre esses dois personagens.  Dante é um nos remete ao poeta italiano Dante Alighieri, autor da Divina Comédia. Na obra, Dante atravessa o Inferno, o Purgatório e chega ao Paraíso, simbolizando uma jornada espiritual e emocional em busca de redenção e autoconhecimento.  Dan é um nome curto e direto, derivado de Daniel, que significa "Deus é meu juiz" ou "julgado por Deus". Essa associação reforça a luta interna de Dan, que carrega o peso das expectativas religiosas, sociais ou familiares, mas também busca sua própria verdade.  Além disso, Dan está literalmente dentro de Dante, simbolizando como suas histórias estão entrelaçadas. Dan é, ao mesmo tempo, um desafio e uma inspiração para Dante, mostrando como as pessoas que encontramos ao longo da vida nos transformam profundamente.

Ao final, percebo que não sou apenas um personagem ou outro nesta história. Sou parte de cada um. Como todos ao meu redor, cada pessoa, cada experiência, contribuiu para a formação da minha personalidade, e não há um único personagem que represente quem eu sou. Cada um de nós é composto por fragmentos de outros, e o que somos hoje é o reflexo de tudo o que vivemos e das pessoas que encontramos ao longo do caminho. Ao escrever essa história, tentei honrar essas contribuições, mesmo que silenciosas, e ao mesmo tempo reconhecer a liberdade de seguir em frente, de construir quem sou agora, a partir de tudo o que fui.

Uma das ferramentas mais poderosas que usamos para preservar o passado e dar sentido à nossa história são as fotografias. O álbum de fotos, por exemplo, é algo que todos nós carregamos, mesmo que ele seja apenas mental. São imagens do que foi, do que não podemos mais tocar, mas que continuam a nos definir. Essas imagens congelam momentos, sentimentos e partes de nós mesmos, e é através delas que tentamos entender o que somos. Ao escrever este livro, muitas vezes imaginei que as palavras eram como fotos, capturando os momentos da vida de Dante – seus encontros, suas perdas, seus medos, seus amores – e, ao mesmo tempo, me ajudando a ver o quadro completo da minha própria jornada. Como as fotos de um álbum, as palavras aqui são fragmentos do que foi vivido, e, mesmo que as horas se passem, elas continuam vivas, como recordações que nos moldam.

Talvez eu também esteja suspenso entre a saudade e a recordação, entre o que ficou para trás e o que ainda está por vir. Mas, ao escrever este livro, espero que mais do que encontrar respostas, encontremos a coragem para aceitar que a vida é feita de momentos, e que o que fica para sempre são as lições que tiramos de cada um deles.

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