A morte é, talvez, o acontecimento mais radical da experiência humana. Diante dela, somos confrontados com os limites da linguagem, do corpo, da presença. A ritualística dos funerais nasce, então, como uma resposta simbólica àquilo que nos escapa: ela organiza o caos, confere sentido à dor e permite que o luto se processe em camadas – psíquicas, sociais e espirituais.
Historicamente, o velório, enquanto prática ritual, tem origens curiosamente ligadas à medicina. Na Europa medieval, sobretudo durante os séculos de maior incidência de doenças como a peste e outras enfermidades comatosas, tornou-se comum o hábito de vigiar o corpo do falecido por algumas horas antes do sepultamento. Isso se dava como forma de garantir que a morte tivesse, de fato, ocorrido, evitando que pessoas fossem enterradas vivas. O termo "velar" deriva dessa vigília — uma prática originalmente preventiva, científica até, que mais tarde viria a se revestir de significados transcendentes.
Com o tempo, o velório deixou de ser apenas um rito médico e passou a incorporar elementos religiosos. As religiões, ao oferecerem narrativas para a morte e a existência pós-vida, passaram a conduzir os rituais fúnebres como cerimônias de passagem: o corpo é devolvido à terra, à natureza ou ao sagrado, enquanto a alma é conduzida a outra instância de ser. O funeral tornou-se, assim, um espaço de mediação entre o mundo visível e o invisível — um tempo liminar onde o enlutado pode iniciar sua travessia emocional e simbólica de separação.
Sob o olhar da sociologia, Émile Durkheim já observava que os rituais funerários são fatos sociais. Eles não pertencem apenas ao indivíduo ou à família, mas à coletividade. O funeral reúne a comunidade, reafirma laços, acolhe a dor e reposiciona o lugar social do morto e dos vivos. O luto, portanto, deixa de ser um sofrimento solitário e passa a ser partilhado — o que é essencial para que ele não se converta em trauma ou melancolia.
Na perspectiva psicanalítica, Freud em Luto e Melancolia (1917) diferenciou o luto saudável da melancolia patológica. O luto é um trabalho: exige elaboração, tempo e simbolização. Os rituais funerários são ferramentas simbólicas para esse trabalho. Ao tocar o corpo inerte, ver o caixão, ouvir discursos e orações, o sujeito começa a realizar internamente a perda. Cada gesto — acender uma vela, trazer flores, contar memórias — é uma tentativa de dar forma à ausência, de traduzir o indizível.
É ainda importante considerar que o funeral permite ao enlutado algo fundamental: a despedida. Vivemos em tempos onde a pressa, o pragmatismo e a negação da morte parecem tentar silenciar o sofrimento. Mas o ritual oferece resistência a esse esquecimento. Ele é, paradoxalmente, um espaço onde a vida insiste. A memória do morto é cultivada, sua história é celebrada, e aos poucos, o amor se transforma: da presença física à presença psíquica e afetiva.
Por fim, negar o ritual, suprimir o funeral, eliminar o velório — como se tornou comum em contextos de catástrofes ou pandemias — é também negar ao sujeito a possibilidade de elaborar. E onde não há elaboração, pode haver apenas recalque, congelamento da dor, somatização ou desamparo.
O funeral, portanto, não é apenas uma convenção. É uma necessidade simbólica, social e subjetiva. É o primeiro passo — ainda trêmulo, ainda dolorido — rumo à travessia do luto. Um gesto coletivo de amor diante da finitude.
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